Uma amiga pedagoga sempre repete, com humor, que até gosta de Matemática, mas prefere manter distância dos matemáticos. Segundo ela, esses indivíduos são sorumbáticos, macambúzios e meditabundos. Parece até que decorou o dicionário para fazer chiste, pois, em sua visão, esses “seres estranhos” só pensam em problemas. Eu acho graça, conformado com aqueles que veem os matemáticos de maneira estereotipada, uma vez que, por vezes, fazemos por merecer. Mas essas contendas ocasionais, nem sempre tão bem-humoradas, entre os profissionais das áreas de Exatas e Humanas – comumente descritas como razão versus emoção – acabam evidenciando o quanto ambas as perspectivas se complementam.
Durante minha trajetória como gestor escolar, sempre mantive uma convivência harmoniosa com os colegas, mesmo que tivessem ideologias diferentes das minhas. Quando emergiam naturais discordâncias, busquei seguir o preceito de Voltaire: “Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo.” Contudo, como professor, essa liberalidade não se aplica à sala de aula, território em que o aluno é um ser cativo e em formação.
Temos aqui alguns causos anedóticos, narrados por um professor de Matemática que exerceu sua profissão com zelo e paixão por quase cinco décadas. Muitos outros episódios ocorreram durante essa trajetória.
Perguntar às vezes ofende, sim!
Em algumas ocasiões, como infelizmente já aconteceu com tantos outros mestres, alunos me abordaram com curiosidade genuína, mas impalatável ao pobre docente: “Professor, você trabalha ou só dá aulas?”
Que aula de bosta!
Em décadas passadas, os cursos preparatórios para o vestibular mantinham normalmente aulas aos sábados, em um dos quais, em pleno verão inclemente, as salas estavam lotadas com potentes e barulhentos ventiladores. Neste dia, eu tinha de ministrar aulas pela manhã e também à tarde.
Meu sogro, vindo do Mato Grosso, me intimou: “Ao meio-dia de sábado, vamos comer uma feijoada no Senac”. “Ok”, respondi, “só que tenho aulas às 13h30, inclusive não vou beber nada” (até porque ele sabia que a única concessão que eu fazia ao álcool era a Malzbier — hoje uma esquisitice).
Sentamo-nos à mesa, e o sogrão chamou o garçom:
— Por favor, duas caipiras de vodca!
Tentei argumentar, mas qual nada, e até pensei que apenas uma não iria prejudicar a minha aula. Mas não satisfeito, ele mais uma vez foi incisivo:
— Por favor, garçom, mais duas caipiras!
Gelei e tentei argumentar que não podia. O sogrão tinha fama de “coronel”, mas, sempre brincalhão e espirituoso, deu o seu “conselho”:
— Experimente uma vez na vida, você vai entrar alegre, vai se divertir e os alunos vão amar, ainda mais sendo aulas de Matemática num sábado à tarde.
Sem alternativa e terminado o almoço, saí correndo para dar aula. Ao subir no tablado, percebi que estava levitando, língua enrolada, mas num esforço sobre-humano peguei o giz e no quadro tentei desenhar um sólido geométrico, do qual tinha que deduzir a fórmula do volume e da área. Olhava para a figura, torta, desengonçada, um horror, por maior que fosse o meu esforço. Bateu o sinal do intervalo e, como eram duas aulas geminadas, fui direto ao banheiro mais próximo, que era o dos alunos, onde vários deles lá se encontravam.
Entrei, coloquei minha cabeça debaixo da torneira e fiquei jogando água no rosto, para refrescar, quando um deles entrando gritou:
— Puta que o pariu, que aula de bosta!
A sogra e minha falha semântica
Mais uma de feijoadas: nós, professores de Matemática, fundamos uma associação denominada AMO² — Associação dos Matemáticos Oprimidos e Opressores (oprimidos pelos patrões e opressores dos alunos) — e nos reuníamos uma vez por semestre em algum restaurante.
Certa feita, decidiu-se que iríamos a um cuja feijoada tinha sido premiada como uma das melhores de Curitiba e, ademais, o proprietário havia sido um professor de cursinho.
Então, em meio a tantas histórias e gargalhadas, comentei com os amigos quão delicioso estava aquele prato que nasceu na senzala e que só perdia para a feijoada que minha mulher fazia. E contei um causo que rendeu boas risadas, acontecido com minha sogra, uma mulher bem-humorada, sagaz em suas boas tiradas. Certa feita, eu disse a ela:
— Casei-me com sua filha por causa da feijoada!
E a sogrinha foi rápida no gatilho:
— Ah, não sabia que mudou de nome!
Uma busca insana
Samuel Lago, grande didata da Biologia, foi meu colega de tablado no Colégio Estadual do Paraná, nos anos 1970, e também um dos fundadores de um conhecido curso pré-vestibular de Curitiba, tendo infelizmente falecido em 2020. Homem culto e leitor voraz, escrevia e editava inúmeros livros, seus ou de outros, frequentemente até altas horas.
Sempre que nos encontrávamos, ele me cumprimentava com a mesma saudação: “E daí, Cotangente de Beta, tudo bem?”. Eu retribuía o carinho, chamando-o de “Professor Pornófono”, por suas incontinências verbais — título que ele adorava.
Por diversas vezes, ele me ligava pela meia-noite, começando a conversa: “E daí, dormindo, meu amigo ‘Cotangente de Beta’?”. Mesmo em sono profundo, por cortesia respondia que não. Ele então engatava as perguntas: “Para que servem esses tais de seno, cosseno, tangente, secante?” e “Me diga aí, acharam o ‘x’? Faz dois mil anos que vocês procuram essa p***a do ‘x’, e nada! Em todos os livros de Matemática está escrito: ‘Ache o x’, ‘Calcule o x’… e vocês nunca encontram!”.